01 May 2007

O jovem Fassbinder


Fassbinder realizou três curtas-metragens, antes de se lançar nas longas, com O amor é mais frio do que a morte. Da primeira, The night, não existem cópias. As restantes surgiram depois do jovem dramaturgo, bastante conhecido na altura, ter reprovado na candidatura à Academia de Cinema de Berlim. O que mais surpreende nestes trabalhos de formação, que passaram recentemente na Cinemateca, integrados numa retrospectiva completa, é a sua maturidade.
Filho de pais separados, Fassbinder habituou-se a ir ao cinema muito cedo, sobretudo com o pai, que vivia em Colónia. Era capaz de ver vários filmes seguidos, em particular os gangsters norte-americanos, que faziam as delícias de quem queria escapar ao já monolítico mainstream de Hollywood. É esse universo, que também foi decisivo para a Nouvelle Vague francesa, e para realizadores tão importantes como Godard, que ressoa nestas duas experiências de dez minutos cada. Mais na segunda do que na primeira, já que esta foi feita em resposta a O Signo de Leão, de Eric Rohmer, filme que Fassbinder gostava muito. Mas vejamos (salvo seja, claro).
Em O Mendigo (1966), um sem-abrigo vagueia pelas ruas de Munique. O ambiente urbano é mostrado logo de início, com um longo plano-sequência que capta os eléctricos a partir, a agitação dos carros, a correria dos transeuntes que rumam a casa no final de mais um dia. Na madrugada seguinte, escondido numa paragem, com uma garrafa vazia ao seu lado, o mendigo vive a solidão da sua existência. Sem destino, encaminha-se para um parque. É nessa trajectória que descobre, no chão, uma pistola. A vida, com a proximidade da morte, ganha um novo sentido. E a concretização dessa possibilidade de vida e de morte anima-o. Mas o acto terá de ser bem feito. Cuidado. Estudado. Meticuloso. Mas a um mendigo nada mais resta do que ser malogrado. Frustrado. Roubado. Destituído de esperança. E em jeito de paródia, duas pessoas que surgem do nada roubam-lhe a pistola. Nem ir desta para melhor é permitido a um mendigo.
A fita seria recusada pelo Festival de Oberhausen, na altura a mais importante mostra de curtas-metragens do mundo, e uma comissão de avaliação não lhe atribuiu o certificado de qualidade que asseguraria ao realizador descontos nos impostos. «Recusar a coisa quase racista que é um certificado de qualidade a um filme tão bem enquadrado e montado como este, num país cuja produção cinematográfica era insignificante», escreve António Rodrigues na folha da Cinemateca dedicada ao filme, «é mais uma prova de que há momentos em que a renovação do cinema só pode ser feita através de alguma violência ou alguma marginalidade». Foi esse o caminho de Fassbinder. «Esta primeira curta-metragem não foi uma experiência, nem uma tentativa, foi uma afirmação.»
Poucos meses depois, Fassbinder realizou O pequeno caos (1967), esta sim uma autentica história de gangsters, como será a trilogia O amor é mais frio do que a morte (1969), Os deuses da peste (1969) e O soldado americano (1970). Outra vez com Munique em pano de fundo, três amigos procuram desesperadamente dinheiro. Tocam às campainhas, entram em prédios, batem às portas, tentam vender assinaturas de revistas, mil e uma artimanhas sem resultado. A única solução é assaltar alguém desprevenido. E é isso que fazem. A realização e a montagem são, aqui, mais ritmadas, com a utilização do plano e contra-plano. Quem bate à porta, que está do outro lado, quem quer vender, quem recusa comprar. A curta acaba com uma sequência extraordinária, e contamo-la, tal como nos alongámos no filme anterior, porque ambos raramente passam nas salas portuguesas. Depois do assalto bem sucedido, e ainda na casa da pobre senhora, Fassbinder, que faz o papel principal, pergunta à única rapariga do grupo: «O que vais fazer com este dinheiro?». Ela responde-lhe: «Não sei, comprar qualquer coisa bonita, um vestido». E, virando-se para o terceiro membro do grupo, um homem, diz: «E tu?». «Talvez um brinquedo para o meu filho.» «E tu?», perguntam os dois. Fassbinder, sintetizando a sua carreira futura, dispara: «Eu vou ao cinema!»

Excertos destas duas curtas-metragens podem ser vistos no site da Fundação Rainer Werner Fassbinder, aqui e aqui.


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